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20251221

Ter frio nos pés, creio não existir nada que mais nos ligue ao pensamento. Hesitante entre o que achar de uma atitude vizinha, basta um fresco sobre a pele que calca o mundo e tal gesto parece-nos desumano, imundo, odioso. Depois calçamos umas meias, voltamos a olhar a janela e sorrimos, atrevidos como somos, talvez esquecidos, soltamos o cumprimento a esse tão próximo inimigo. Não me imagino apenas a cada novo sol, mas também aquando de alterações na temperatura do meu forro inferior. Órgão que tento mistificar para criar relação com a terra, mas que insiste em lembrar-me da praticidade que perdura desde uma qualquer origem, sobretudo, dessas que tanto inventamos. Existir descalço, a minha poética, ode à vida, que me põe doente, quer seja por insistência, ignorância, imaturidade, mas nunca irreverência. Bom dia vizinho, é o que me sobra entre espirros. 

20251214

Agora, em mudança, antes de pratos e talheres, olhamos a regularidade que tanto teima, mas o que vem? Esconde-se na pedra antiga tudo o que fingimos afastar? Será a mão o inverso do pensar? Finge-se o que não se faz. Pensamos trazer madeiras, das que passaram, entre guardar e receber. A mesa já foi balcão do artesão, lugar de solução rápida em reação à intempérie. Pelo menos, por vezes, poderá ter sido, quiçá. Palco de sonhos, daqueles que se perdem com o galo de segunda-feira. Agora mesa, ainda inacabada, de peito à terra, como o que espera o criador, moldador profano que teima em desviar origens ao seu belo prazer. Penso então, o que será uma mesa? Superfície plana que apoia? recebe? ouve? se penso em abraços, prefiro adivinhar-lhe sentidos, palco de  amigos em coro. o que é esta mesa em casa? da que aceita a mão do fazer, esta vem com o saudosismo de um por vir qualquer, dentro de tantos um irá prevalecer. Ainda sem falar do armário que guarda sobras desses cantos em amizade. Hoje vim com T ao cinema, recordar um filme do não agora, talvez aqui, lado a lado, entre escrever e coser, tenha aparecido, ao dia de hoje, um limite diferente ao que se adivinhava no cantar do tal galo.

20251207

Hoje é um daqueles dias. Parece que alguém se esqueceu de pintar o mundo. Branco. Nuvem que só a lua pode empurrar. Pena ser dia, tão dia. Nisto agarra-se à pedra. Que já foi cunhal, que hoje finge ser umbral. Também o sino é mentira. A antiga mão que trazia a sua dança perdeu-se. Nessa pedra, que é como quem diz: esquina. Espera o autocarro. Enquanto se tenta lembrar de M., mãos de rugas, marcas das cordas que marcaram a cronologia vencedora. O pretérito vai para as mãos, não para quem vence. A esquina esgota-se, prefere começar a subir. Ultrapassado pelo pensamento seguinte demora-se em passos. Como não há cor, quem poderia reinvindicar que é chuva sobre o sol? G. tenta desenhar-lhe uma possibilidade. Finge sombras em resposta ao branco. Sombra essa desenhada por um obstáculo organizado que protege os seus pés do derreter da terra. Coração palpitante, escondido, inventado como um deus do mal para uns, como o que contém a força do existir para outros. Sobre essa horizontalidade tenta ainda, G., pousar a mão de M., tenta dar-lhe um novo tempo, quiçá longe daquela tão grande ausência. Talvez a sugestão não seja mais que uma medida. Utiliza a palma da mão, enquanto outros preferem o pé, uns medem com o desejo de moldar novas sombras, enquanto outros preferem caminhar até elas. G., em despedida, mas o dia não é matéria controlável, nem algo que se possa pisar, M., em sussurro. 

20251131

É aqui que me recordo de Hegel e da sua dialética: uma tese (ideia estabelecida), confrontada por uma antítese (ideia que se lhe opõe), produz uma síntese — um novo conhecimento, uma novidade que só emerge desse choque. A transição de Copérnico para Galileu pode ser lida assim. Galileu confronta a ordem estabelecida, ameaçando a explicação religiosa de que Deus seria o ímpeto que move o mundo. Torna-se necessário afastá-lo para retardar a síntese que surgiria desse confronto. E, no entanto, essa alteração no modo de compreender o movimento acaba por transformar a forma como pensamos o mundo e nos pensamos dentro dele. Aqui, parece surgir um acontecimento: algo que nos apresenta um conhecido até então desconhecido, ignorado por nós enquanto sujeitos. Como o natal se está a aproximar penso comprar a bíblia.

20251123

Como era sexta-feira esperava-me uma noite de boxe, desses que se vê na televisão inventada por sites ilegais, isso disse aos homens do trabalho. Como era sexta-feira esticou a manta sobre os joelhos e puxou uma semana de novela perdida, o amor de Pedro e Joana desacalmava o sono do quotidiano, isso não dizia nem à minha mãe, há que evitar desgostos. Como era sexta-feira estava sozinho na cave do prédio mais alto da capital e esperava a angústia entre querer estar com os demais, que não me querem – eterno desconhecido – e estar só, os que também não me querem, mas que a morte lhes calou o pio. Como era sexta-feira respirava o silêncio, encostava o ouvido ao chão para ouvir as nostalgias de uma madeira que já foi árvore e insiste em perpetuar o respirar que lhe roubaram. Como era sexta-feira pegava no whiskey do bar do costume e brindava com a sombra, já que nem o barman aguentava o meu hálito, e repensava como era feliz nesse abismo entre ser um pássaro sobre um fio ou uma folha caída, perdida e rasgada de um diário de uma qualquer alma apaixonada. Como era sexta-feira sou isto e nada disto, pois o empurro do automatismo fez-me esquecer que a lágrima pode secar quando escondemos o nosso suspiro em dores que imaginamos nas outras janelas.

20251116

Continua dentro. Finge-se janela, atreve-se uma varanda, mas continua dentro. Há algo de luz e ruído de fora, mas continua dentro. A erva no passeio – imagem cansada –  mais livre que o dentro – talvez deslocada, se estamos dentro. Abre-se uma qualquer porta, tenta-se um qualquer ir. Já foram praças, praias, um campo sem fim, mas continua dentro. As fracas metáforas esgotam-se em si mesmas, são fracas metáforas. Levanta-se, deita-se, anda-se, salta-se, mas continua dentro. É como a nuvem que controla o sol, como quem diz: o ( ). Não há lua, não há tocar, há dentro. Haverá sempre dentro? O amanhã diz-te que não, diz-me, eu que não estou fora, ou dentro? Quem sabe? Quando todos continuamos dentro.

20251109

Ponga aqui su droga. Esto nunca había yo pensado. Morir decapitado. No rolar da esfera oca perde-se sotaque, que é como quem diz, som, ou outra coisa qualquer. Finjo ainda ouvi-lo: antes dizia que gostava de chegar à fome extrema para conhecer os meus limites, mas na verdade só estava a ser irresponsável comigo mesmo e eu sabia-o. Nem em silêncio se perdeu. Também morreu a ficção coletiva (vivemos imersos nesta tentativa de evidenciar o eu.). Há algo de perfeição no sólido compacto, troco os adjetivos como quem espirra aos pares. Alguém agarra no berlinde, e tenta, com uma mão de fisga, que este passe por um buraco muito pequeno para chegar a algum lado. A tudo isto assistiu o polícia em choque, antes de sorrir, oferecer o chapéu de título e afastar-se em noite de assobio. Há ordem a cumprir.

20251102

Ao vidro chegou o hálito, qual antecessor de um dedo que tenta prender uma fugaz imagem do mundo, e com este encontro veio a lágrima seca de esperança, que cai no metal do lavatório, depósito de loiça que nunca se lavará, e por toda a casa ecoa o que por semelhança só poderia ter um gongo tocado na mais alta das montanhas sem ouvido humano que o receba. Terá desenhado entre sopro e toque uma qualquer distração adulta, um esquecimento da defesa necessária aos que tão pouco sabem. Um susto que talvez não fosse mais que a concretização de uma imagem já conhecida, mas até ali sem corpo. Um espreitar de um vício, de um desistir, de uma cedência completa da alma (?), intimidade? singularidade? talvez: isso é o que significa ser-se em si mesmo, ao corpo, curioso será pensar, aqui no presente e no refúgio do narrador que conta uma história nunca ouvida, que esse gesto de cedência poderá ser precedido de uma cedência completamente inversa, na fragilidade da alma (?), intimidade? singularidade? talvez: isso é o que significa ser-se em si mesmo, um refúgio no corpo. Não há metáforas ou subjetividades nas palavras deste narrador, tudo é descrito como ouvido num qualquer encontro de silêncios. Não fui, não vi, não estive, mas tendo a acreditar que qualquer relato, até que inventado, pode ser útil para dar mapa a um qualquer leitor perdido, não quero com isto ter a arrogância de pensar que alguém me lê, preciso crer num mundo mais sapiente, senão, para quê escrever? Sobretudo para não ser lido, tal como a fugacidade que um dia apareceu naquela velha janela. Se vos tentar dar uma imagem mais nítida, como quem pega num artifício que amplia o que se vê, tento relatar o encontro entre humidade, que vem das entranhas do corpo daquele pequeno ser, e farelos de dias esquecidos, levados no automatismo de uma compulsão que empurra um grupo quase infinito de sujeitos ativos e desativados, dependendo da consciência e/ou do desenho do mundo de cada leitor. O verão corria pela sua exceção, mais terrível, demasiado maduro para aquela enorme pequenez, roubo-te o termo como quem te abraça, a vertigem do virar do pescoço e perceber que o encanto da meninez, devolvo-te um termo como quem te fala,  desaparece como quem nunca ali esteve, chega-se até a esquecer que antes do assombro existia outro cenário, outros personagens, sons, cheiros e sabores. Apenas se mantém, fora da janela, a árvore que durante a noite acariciava o vidro como quem embala o sonho, qual orquestra onírica. O narrador com o leitor ao colo entra nessa cozinha, primeiro fareja pela janela, entre tachos e pó sobra a luz resistente, aproximo-me – contigo, não te esqueças – e vejo a sombra da árvore na parede que limita o pátio, dança como quem vai adormecido na mãos da dança em amor, mas da árvore nada se sabe, o chão é cimento, antagonista da vida, e parece ter escondido sob si, a tal árvore, que é o mesmo que dizer, a tal história contada em silêncios.

20251026

No pátio descansam, (enquanto as folhas dão às asas, a nuvem foge como quem não quer ir, da água do rio nem se ouve falar, o pranto do tempo assusta quem se senta, no nó da árvore sobra o amanhã, na raiz um presente que não vem, senta-se o desgraçado perdido, ave de fome ou sonho interrompido, nesta terra de ditados, não há pão nem casa, as sombras repetem o não visto, caminha com o peso do vir, o retorno insiste em) algumas partidas sem jardineiro que as ame.

20251019

Sentado na esquina da queda, evita o olhar brusco pelo medo ao que o suporta. Dúvida: será suficiente? Finge pensar nas características físicas dessa matéria para esconder a angústia que o desestabiliza. Parece esperar o segredo que chega de costas. Tanto espera. Ao longe, como quem não vê, nem é visto, estás tu, outro desespero em pausa. A paisagem esconde-te, para o desatento perde-se uma timidez, daquelas que crescem entre as últimas folhas que ainda não caíram – quanto mais nascer – e um tronco de uma árvore sem fruto. Nesse cenário inventado, vê-te. Via-te. Havia – eterno imperfeito – algo que deixava ver. Pensou sorrir-te, pensaste sorrir-lhe, mas nada, entre o pensar e o agir há o estar sentado, há, sobretudo, o esperar.

20251012

Como uma crónica de um dia de sol, quando tento um propósito que surge antes de começar a escrever, tendo para o esquecer, desviar-me, melhor, fugir-lhe. Mas hoje está sol, escrevo à janela, uma qualquer janela, que se oferece a um qualquer parque, que é recebido por um qualquer dia. Tem algo de casa esta imagem de um hoje com sol. Não vejo mais que hábitos não meus, mas mesmo assim há algo de conforto, talvez seja o reflexo da luz no pavimento opaco. Nesta tendência para a contradição desvio-me para as tantas varandas que me olham, vazias. Há então, um hoje, esse dia de sol e a solidão de se ver os que passam sem perceberem que são vistos. Neste parque de ninguéns, alguém reina, será o sol? – canónico deus maior. Penso na chuva que não cai, mas ouvem-se, entre reflexos deste sol que tanto sobra, aparecer pequenas gotas, não sei de que quando, nem de que solidão acompanhada. Finalmente o desvio, como uma crónica de um dia de sol repito o maior hábito da nossa ( ) e, banhado em luz, imagino-me encharcado por uma água que insiste em não aparecer, hoje. 

20251005

Escrevo ainda quente ao voltar dos 19 textos visuais de Hatherly. A poesia pode ser uma manifestação estética que, por um lado, transforma a percepção da linguagem e que, por outro lado, desconstrói os limites de experimentação da mesma. O significado perde-se em infinitas possibilidades de miragens semânticas, sem qualquer necessidade de se inserir em categorias ou numa linearidade racional. A reconstrução contínua dos códigos, evitando a estabilidade, traz uma nova forma de ler a literatura, de pensar a linguagem. Desconstruir ou desautomatizar o ato de atenção permite uma nova forma de estar no meio em que nos inserimos, seja na relação com o outro ou com o eu. Ciente de que esse outro e esse eu, não são mais que corpos presos à ordem imposta e estabelecida, há então que usar a poesia, a literatura, a arte ou o pensamento para tentar uma experiência renovada e mais profunda no real. Se é possível? Há que tentar! Quantos de nós não usamos ferramentas inconscientes para nos enganar, para simular individualidade? Esse conceito abstrato, fundado pela narrativa imposta, tem de ser derrubado em prol da singularidade, esse lugar cada vez mais escondido na sombra e que talvez só a literatura, a poesia, possam iluminar. Mas isto não passa de uma possibilidade, um adivinhar, uma percepção individual expressa em papel que, como a poesia, tenta ao entrar em contato com o leitor, gerar uma nova percepção particular, agora desse outro, a partir de um novo gesto de similar de adivinhação. Talvez o que se pretenda é contrariar a simbolização coletiva, na qual a percepção de cada indivíduo, embora não automática, tende a criar novas representações ou significações para um objeto previamente estabelecido. Deve-se então fugir ao reconhecimento dos significados fixos dos objetos (ou textos) que nos precedem? Talvez sim. Sugiro, aqui que ninguém me lê, a percepção própria sobre objetos e significados, desafiando o automatismo, o intacto. Como a criança que nomeia imagens desconhecidas, tentemos adivinhar possibilidades nesses objetos, assim talvez possamos renovar a atenção e atualizar consciência, abrindo, quiçá, espaço para novas linhas de pensamento, (atrevo-me) de conhecimento.

20250928

Por quantas ficções teremos de nos circundar até conseguirmos acreditar numa possível concretização? Concretização do nada, essa divina crença. O meu deus é o nada. Por favor, não confundam nada com tudo, erro comum no diálogo que é vento sobre o belo. Não sei se é um nada de ausência. A sua imaterialidade torna-o tão enigmático que nem eu, seu criador, o consigo tornar em imagem. Mas talvez não seja ausência. Para isso teriam de existir duas matérias que libertassem o breve hiato imaterial. Não acredito nessa possibilidade – construção da imaterialidade por duas materialidades que simulam a humildade de se anularem. Só nada se anula. Ninguém teria a coragem de se anular. Mais uma prova do divino do nada. Poderá ser uma crença no nada uma não crença? Talvez não, o nada apela-me a uma fuga de contradições, ou melhor, corporização por vontades díspares. Os termos confundem-se. Eu confundo-me. Prefiro o nada, divino nada. Um dia irei beijar os teus inexistentes pés e irei sorrir com os meus inexistentes lábios, presos numa inexistente cara, que pertence a um inexistente corpo, que existe pela sua própria inexistência.

20250921

Parece nascer uma ideia óbvia. Como sentado em conhecimento com paisagem de outro. A língua é a música, (        ) que ajuda ao retorno, mas é sobretudo o paladar que me leva para lá. O lá que já foi cá, no viver e no escrever. Um lá que também é início de caneta sobre papel. Volto a cair sempre nos mesmos motivos. É o vício de quem não sabe o que dizer. Não sei em quantas janelas já escrevi, (        ) ainda menos. Há (        ) entre o papel e a (        ), uma nostalgia quase sem imagem. Cabe-lhe vários tempos sem (        ) e sem papel. Sabe-me a um retorno lento, a lado nenhum, a todo o lado, a um estado (        ). Olho a felicidade de não ter imagens, sensações, sabores ou (        ) a que retornar. Talvez seja o retorno a um presente, este de estar aqui. Num momento em que já estou mais de partida que agarrado a este lugar que me despeço, (        ) futuro pretérito. Não me esqueço que a despedida tem a longevidade do meu respirar. Então, se vou é temporário, aquele livre e frágil tempo que pode estar tão longe como (        ), ou tão perto como (        ). Há que largar o papel e agarrar (        ) que me levam a tantos sítios, esses que são (        ).

20250914

Como quem não se repete, na contínua repetição, cantava do cimo da escadaria. Olhava-o de cima, as alturas assustam-me. Tento dividir o seu canto, separar o que é seu e o que é sobra do toque do vento nas folhas. Quase solitários. Cenário cinza, sem folhas, penas, talvez almas. Vem uma, a que rasteja na sombra do primeiro degrau, nem finge fingir-se. Perda em ascensão, apesar da subida lhe estar vetada. Não por ordens de poder, talvez pela falta. A sua, a minha, a de quem canta – solidão tripartida. Até o que tende para a inexistência não vive sem vários de si. O canto saudou-nos, a mim e à sombra. A vergonha escondeu-nos. Salto para a sombra, queda em varanda. Assim nos vimos, sem nos vermos, naquela escadaria, ou varanda?, enquanto imaginava como seria o teu canto.

20250907

A idade era outra. Não a minha, mero desejo. O que se pode adivinhar do agora, não é mais que isso: adivinhar. Por isso, nos livros, nos filmes, nas distrações em sombras do caminhar, revejo essa idade. Não minha, talvez de ninguém. Finjo-a. Sorrio com a certeza de ter encontrado uma representação de uma qualquer verdade. Aceito-a. Guardo-a como pureza. Tão pura como a água do poço em que vejo essa outra idade. O reflexo vem esbatido pelos tons verdes e pela insistência do vento, esse anulador de silêncios. Sentado, enquanto escrevo, confundo idades, protagonistas e cenários.

20250831

Como sociedade somos envolvidos pela mentira, pensemos na mentira como a pele da cobra, que a protege da envolvente, quiçá da verdade, de tempos a tempos a cobra perde uma pele em prol de outra, tal como nós que vamos substituindo mentira por mentira para que a narrativa coletiva funcione, há mais nesta analogia, alguns de nós agarram nessas velhas, secas, perdidas peles, deitados sobre pedras pretéritas, e tentam vesti-las, mas como não se pode vestir a pele de uma outra cobra, é ridículo o realce daquilo que não lhe pertence, veem-se os motivos, intenções, quiçá mentiras, que tentam vestir para se proteger da maldade que é ter de aceitar o outro, não como um limite alheio, mas antes como uma continuação de si,

20250824

Decidiram, como quem obriga, desenhar uma árvore no meio do mar. Quem? Comprometido, escondes-me rostos, desses que acredito não serem contornados de pele humana, mas antes de espera vegetal. Confundo-me ao tentar confundir-te. Árvore que planta árvore. Os braços parecem-me distantes, entre si, entre mim. Talvez por estar plantada no centro de um qualquer mar, esqueço-me das outras, as que me partilhavam a sua sombra. Antigos rostos, uma vez folhas, agora água que me apara o voo. Aqui, quieta, plantada por outra árvore que desconheço, ou finjo conhecer. Não há poética na minha história, singelo retrato, talvez tenha perdido a cor pelo tempo. Não sei os que me veem, estranho-os. Sozinha, escondo-me atrás da transparência de um vidro que te finge água. Sozinha, me despeço sem nunca ter existido, a não ser numa qualquer desatenção que te assustou, talvez vinda do espelho.

20250817

(R) Era uma vez um menino que brincava sozinho no jardim de sua casa. (T)  Voava no velho baloiço do jardim que rangia muito. (R) Parecia que esse som o fazia recordar memórias de outros meninos ali a brincar. Memórias não sua. (T) Mas que lhe pertenciam de certa forma, afinal era o mesmo jardim. Agora descuidado, despido, feio até. A sua mãe pouco regava as plantas, não gostava de as ver crescer. (R) Talvez porque a sua mãe acreditava na morte sobre a vida. Talvez essas memórias não fossem mais que um reflexo do olhar do menino sobre a perspectiva da mãe. Perspectiva, posição ou distância. (T) E só as memórias lhe restavam. Vivi-as com uma grande intensidade, pois só assim poderia viver o jardim que outrora foi. Questionava o porquê de a mãe não brincar perto dele. Afinal o baloiço ainda voava, havia sempre terra molhada e alguns ninhos de pássaros caídos no chão. (R) Olhava para o jardim como um reino outrora governado pela sua mãe, a rainha da felicidade. Que monstro teria roubado esse reino? Que monstro tinha levado o seu pai? O pai que todos dizem ser o protótipo de si mesmo. Foi o pai que levou a felicidade da mãe? Gritou na mudez do seu interior: Silêncio!



20250810

Não havia nada à minha frente, não há nada à minha frente. Agora pergunto-me: ruído? ou vazio? (      ) escrever ou ler? (    ) agarrar-me? ao silêncio? à destruição? à aceitação? ao esquecimento? ao esquecimento? Nesta mesa abandonada, penso em renunciar às certezas, em poder consentir a separação do que consideramos fixo – receber a dúvida. Porque não podemos renunciar às palavras? Vejo uma possibilidade: tentar dançar entre a leitura e a escrita, como uma nova forma de ver, ou de medir a existência. Que outras opções temos? Entre a espera, o silêncio e a solidão, prefiro acreditar na carne e não na razão.

20250803

Gostava de ser o que dança. Menos que sozinho em casa, na rua, isto é, algures no hábito da rotina, em festa, isto é, quando me distraio e dou por mim no amanhã. Animam-me as músicas de quatro instrumentos, velho vício, guitarra, voz, bateria, baixo, talvez em ordem inversa. Gostava de ser o que dança. A soltura de não pensar no que faço, uma espécie de automatismo, surpreendentemente consciente, de deixar que o pé se troque pela mão, a atenção do olhar pela distração do ouvido. Penso muito neste desejo, seria um dos três que pediria à lâmpada, ou ao que dela surgisse. Os outros desejos não os sei, pensar neste já me custa. Penso no dançar público, não pelo que me vê, mas antes por poder sentir que, independentemente de contextos e corpos, o meu ser pode acreditar numa qualquer liberdade. Gostava de ser o que dança, mas a razão supera-me. Tropeço na regra, penso num ritmo, a ordem dá-me outro. Parece que existe uma desconexão entre o meu eu pensante e o meu eu executante, melhor, entre pensamento e corpo. Agora que paro nesta hipótese, apercebo-me que não é só na dança que a ligação entre pensar e ser se quebra, melhor, se esquece de si mesma. À mesa chego a discutir verdades da minha mão que esta jamais conheceu. Se volto a esses momentos vejo uma mão que olha sobre si mesma, parece procurar algo entre as linhas do destino, procura-se, melhor, procura uma versão de si que desconhece, assumo, não se pode conhecer o que não existe. Gostava de ser o que dança, mas apercebo-me que tendo a mentir às minhas mãos. Aqui fica este mea culpa, sem valor, aliás, que ele próprio é uma mentira. Há que fugir à culpa, tentar dançar, ir-se em sons desconhecidos. Deixar-se ir num qualquer salto horizontal. Talvez dançar possa ser o simples gesto de pôr o meu corpo paralelo ao mundo. Gostava de ser o que dança, então uso a caneta, assim minto-te, minto-me, mas sigo feliz pela possibilidade de que o movimento que agora acompanho, essa suave saída de tinta, esse macio beijo entre ideia e papel, possa ser uma espécie de dança. Não os anteriores instrumentos de The Doors, antes o piano de Olena recriando Mompou, mas isso porque na meta escrita há que simular alguma intelectualidade. Sirvo-me da ironia para não marcar posição, para fugir de uma qualquer opção fixa, talvez dance. Quiçá. Vou fingindo desejos, fingindo-me. Vou, sobretudo, melhor, tenho um caderno novo, não sou o que dança, mas não é por isso que deixo de me divertir.

20250727

Antes de mais, tem de se crer na unidade. Sente-se um arrastar dessa unidade. Rapidamente se anuncia a ruína por vir. Atrito como força que fragmenta. A repetição que não repete, mas que já em si contém fragmentos que foram/formam a primeira unidade imaginada. Será imaginação o todo pelas partes ou as partes pelo todo? Um limite de conforto para o entendimento. Ou o entendimento progressivo que aspira a uma concepção de todo. Aqui tudo se desfaz. Arrastada pelo tempo a matéria desintegra-se. Nem máquina nem humano terão a força de contraditar tal desordem. Ou ordem? Poderá ser a ação fragmentária o caminho para a ordem? A possível ordem seria a ilusão de um entendimento único, alguns arriscam a chamar-lhe verdade. Eu, arrisco dizer que a ausência supera a presença. O loop cheio de nada, apesar de conhecido como tudo. Ou unidade. Silencio a visão na procura da ausência. Nada é tão figurativo como esta ausência de referências visuais. Por muito que queiramos negar, existe a força humana neste processo de des-unidade. A matéria arrasta-se. Quase que se perde em si mesma. Anuncia novos sons, antes escondidos ou até inexistentes. Quem sabe? A unidade tanto esconde. A desintegração vem de dentro de mim, o que escreve. Talvez até seja um cómico e generalista retrato da figura humana. Por dentro, não por fora. Quando abro os olhos já não sei em que inicio está a ilusória unidade. Na ausência ou na presença? Vejo desintegração em toda a parte. O conceito de humanidade é um leve (          ) que esconde essa unidade assassinada, que em todos os cantos desta esfera desintegra conceitos de igualdade, liberdade e (          ). Talvez falte mais um encontro político onde se afirme que é urgente a substituição do termo humanidade pelo termo desintegração. A história mostra esta constante repetição e continuidade na fragmentação, com a consequente hierarquização de ilusionismos sobre o conceito de humanidade. E o som repete-se, tal como o ar que sai de mim. Sai e desintegra-se na envolvente. Não só toma a liberdade como é metamorfose de algo íntimo em coletivo. Perdi-o. Modificaste-o. Tão teu como meu. Tão perdido como eu. Matéria desintegrada de uma noção de unidade. Corpo definido por uma origem concreta. Pequeno fragmento de metamorfose diária perdida, não vã procura de uma noção de ser. Serei ausência ou presença? Talvez o encontro disso. Há algo de contorno no que caminho desde o pretérito da existência até ao porvir imaginado. Talvez uma mancha de tinta que insiste em cumprir o seu propósito, mesmo que definido ao longo da sua própria criação, ou, para o mais atrevido, crescimento. Cresço tanto neste loop desintegrante que é respirar e fazer todas as obrigações para me tornar ato contínuo. Serei talvez um fragmento perdido da minha própria unidade, ou então, atrevo-me a dizer, serei a unidade fragmentada que em cada novo movimento de ar acarreta em si uma nova parte e abandona tantas outras. Constante despedida de partes que se perdem neste aparente infinito. E de olhos fechados continua a desintegração em loop. Uso loop, tanto pela imagem como pelo som, é uma palavra que me alegra. Chego até a sorrir ao escrever estas linhas que agrandam a fortemente fraca convicção que sou uma desintegração constante que tende a afirmar-se como uma possível unidade, mas crente que a metamorfose contínua terá tanto de perda como de novidade.

20250720

Tadeu aparece para se apresentar. A praça vazia responde com o desprezo que este tanto merece. Na sombra que o persegue há algo de pretérito. Não sei se o seu nome é próprio ou verbo ido. Naquela sua terra sem praças, nasceu, perdido de si, em si. A lotação do espaço impede o leitor de ver o que se lhe veste. Suspeito, eu que a tão pouco me atrevo, que se veste do movimento contínuo. Tempo. Poderá ser Tadeu tempo sem espaço? José, vizinho próximo que nunca o abraçou, pensou dizer-lhe um dia, que há um tempo diferente do tempo que nos marca o tictac na parede. Imagem de um passado desconhecido, nostalgia de outro, ou saudosismo do que sobra no ouvido. Tadeu continua na praça, pais brincam, enquanto crianças fingem fugir à dor da rotina. Penso desenhar uma corrida que chega em abraço, qual catástrofe de um personagem imaterial que tenta beijar com saliva de pena a humanidade que o nega. Felizmente, sou covarde, infelizmente, humanidade é um substantivo em desuso. Então, nada se passa, a praça continua vazia. Da varanda da casa que não tenho, vejo Tadeu em despedida. Imagino-lhe a roupa, o cansaço, quiçá um corpo, enquanto me acena sem respirar. 

20250713

Quando era pequeno dizia que queria ser um pássaro. Não podia ser árvore, dizia, porque as raízes impediam-no de ir. Alguém lhe pergunta, hoje – atenção ao presente – então porque páras na sombra das árvores? Parece-me que tenta responder pelo som do vento – silêncio inventado. Abraça o tronco, como quem mede, quanto cabe na minha mão? Finge perguntar. Outro alguém pensa na óbvia repetição e atreve-se a levantar suspeitas sobre a mesma. Suspiro eu, distante, debaixo da árvore, entre terra, talvez. Óbvia fuga do crente de um contínuo, dessa qualquer medida sem números, palavras ou sonhos. Volto a vê-lo, ainda atento à mão. Já não parece medir-se. Localiza-se, quiçá. Contínua dança entre ser-se no espaço e no tempo. Talvez por isso abrace a árvore, esse par perfeito, amor proibido entre estar e ser. Tudo isto é um talvez que se desenha na pegada do pé ou na árvore que nunca abracei, pois queria ser pássaro. Finjo-me, serei desses que não voa.

20250706

Aqui deitado dentro do vazio feito pela matéria humana oiço o escuro do céu e cheiro a luz das estrelas. Tenho medo de olhar a janela. Tenho medo que seja dia. Quero aumentar-me, mas a água está fria. Tenho de acender a fogueira. Oh Prometeu, desce e encanta-me com a ilusão do conhecimento. Ensina-me o ditado da técnica sobre o sonho. Escreve as respostas para que crie as perguntas que lhes caibam. A água continua fria. E eu deitado. Espero neste quando. Sem tempo ou sem metrónomo. A música é me estranha, vem de dentro. De onde? Dentro de quê, se aqui tudo é imaterial? A água está fria e eu aqui sentado. Quase que tomo coragem de me levantar e olhar a janela. Quase. Só quase. E deito-me. Nunca terei o ritmo, porque aqui dentro quem manda é o silêncio. As paredes são revestidas com caixas de ovos. A minha avó passou-me o hábito de colecionar estas caixas, eu só tive a curadoria de as pôr na parede. Cheira a galinha. A coco de galinha, mas isso aprendi com a outra avó. Talvez a água já tenha aquecido um pouco. Será que fiz xixi nas cuecas? Nem tenho cuecas. Já não me lembro quando as tive. Oh cuecas fugitivas. Subi dezasseis degraus para chegar aqui abaixo. Obrigaram-me a tirar os óculos para ver melhor. Agora vou dormir que as necessidades físicas superaram qualquer desejo mental. Mental é uma palavra feia, está entre a ciência e o mistério, ou talvez. Opostos e talvez. Para a cabeça descansar no tecido amachucado tenho de encher este resto de amarelo com palavras vazias. Espero que até esquecidas. A água não chegou a aquecer.

20250629

Ser onde se está. Noção da importância espacial do nosso corpo, isto é, a relação que criamos com os limites que nos entornam e os objetos dentro deles perdidos. Não perdidos de si mesmos, mas perdidos da nossa consciência sobre eles. Desconhecemos o seu propósito ou atrasamos uma interpretação. Olhemos então o que nos circunda. Toquemos com as mãos nesses limites que nos protegem, ou pensamos proteger. Sou corpo perdido no espaço, mas esculpo planos que definem os limites em que sou capaz de comunicar, de me alimentar, ou, resumindo: existir. Serão necessários os limites para o tal existir? Ou esta consideração só tem dimensão no corpo subjetivo? Desbloqueemos o nosso corpo para o território incógnito. Sobreviveremos? Com garantias materiais, naturais e não artificiais, acredito que a sobrevivência física está garantida. E a psicológica? Não iremos diariamente traçar limites cada vez mais concretos para o possível mapeamento mental? Mapa dos medos, das coragens e dos desejos que se enquadram ao novo lugar e às novas sensações. Essa necessidade não será uma resposta afirmativa à premissa do ser onde se está? Se acreditarmos nestes meus hipotéticos factos, entendemos uma adaptação do que somos ao lugar. Uma metamorfose que nos capacita de ser o resultado do espaço que nos recebe. Isto não invalida tudo o que demais nos define, concentro-me numa parte para que, talvez mais tarde, entenda o seu impacto no todo. Não existe uma anulação dos lugares passados, só a consciência de uma transformação pelas sensações que o estar nos impõe. Talvez por isso, na língua inglesa o verbo ser se confunda com o verbo estar. Mais uma divagação infundada. O palco da comédia surge quando imagino uma tradução para inglês deste inválido texto, ou fragmento de um des-pensamento.

20250622

Talvez. O ser humano sofre de uma noção abstrata e singular de continuidade, e é através da analogia — medição entre símbolos — que constrói a sua percepção da continuidade da realidade que o envolve e que, simultaneamente, o habita. Ao tentar compreender as intersecções internas, bem como a realidade que o rodeia, o sujeito encontra no seu léxico de signos pessoais a ferramenta primordial. Esta tem a capacidade de se transformar, segundo os vários tipos de relações, numa linguagem outra, sempre em devir. Esta construção simbólica revela-se infinita e em perpétua metamorfose, na medida em que os símbolos representativos são capazes de reagir a investidas e reconfigurações relacionais, subvertendo qualquer tentativa prévia de fixação ou definição. Tal como toda a criação humana, que nasce de uma intenção inaugural, mas se reconfigura ao longo do seu próprio percurso, esta construção simbólica não cessa de evoluir. E, nesse movimento, instaura-se uma responsabilidade partilhada por cada sujeito, à medida que este reconhece os símbolos ao seu dispor como instrumentos de expressão e entendimento daquilo que o seu imaginário, em constante atividade, tenta tornar comunicável.

20250615

Descansava sentado na cadeira da escola primária. A brisa mecânica substituía a natureza infinita. Aquela madeira significava-lhe agora algo de novo. O respeito conquistado pelo medo escondia-se no pó, mas a nostalgia fazia com que o verniz se transformasse em lágrimas que celebravam o culto de tempos pretéritos nebulosos, indefinidos, talvez imaginados. Uma nova imagem para um possível objeto do passado. Tenta tudo o que imagina, pelo menos uma parte, talvez uma pequena parte, admite o pouco, realiza-se com o nada.

20250608

Tudo começa num estranho caso. Um bar. Seis pessoas, talvez mais. Um café e duas garrafas. Un doble, que já sei que é masculino, fraquejo muito no meu melhoramento técnico. Em que livro tomaram consciência, pela primeira vez, da literatura? Tantas respostas. A história do meu livro. Uma clínica. Várias clínicas. Um livro roubado. Alguém encontra o livro num mercado. Penso nesse (re)encontro. Para isso, falo na primeira pessoa, como se eu fosse esse alguém, conto o meu dia até ao livro. Por não saber como fugir deste lugar reescrevo uma carta, de despedida? A mensagem: Escrevo-te para te contar o que sorri quando aquelas palavras me obrigaram a olhar o belo sol que batia na parede do meu pátio. Fingindo este papel consegui mudar de lugar, há um regozijo neste controlar de um cenário que eu próprio criei. Pouso a caneta sobre a madeira. Para quem não sabe, há metáforas que não abandono, mas abandono-me, e logo caio na mancha de tinta que manchava a minha mão. Nem disfarço a ingenuidade como que me finjo consciente, então naquele novo estado, o líquido escuro lembra-me aquele lugar de sonho repetido, controlado e inventado, sobretudo no espaço do diálogo, vejo-vos, como quem me sussurra ao ouvido, para cheirar um vestígio de umas das tão hipotéticas origens. Atrás deste eu sentado, ombro esquerdo, conforto materno, ombro direito, talvez a culpa que mais ame. Nunca vos contei isto. A sombra cresce, mas como uma mão que nos massaja um talvez consciente. Algo tão simples como dedos que dançam com os nossos cabelos, rio-me, aqui, sozinho, hoje pus o teu álbum, sempre veio comigo, mas nunca lhe toquei, até hoje. Mãe, foi como quando lia os teus cadernos da escola, mas que nunca te contei. Perdão sem culpa. Fui um pouco no cenário que a minha limitada imaginação me permitiu. Cheguei a sentar-me à varanda e a ver um beijo de esperança, entrega e semelhança, entre eu e T, outros penteados e, quiçá, máscaras, mas a mesma convicção. Só que na pedra que pisavam lá estava a sombra, esta história que nunca vos contei. Se um dia lerem estas palavras, um abraço que dure não menos que o livro que um dia roubei. Serão estes alguns dos lugares em que o livro desapareceu.

20250601

Para este dia. Como uma representação pictórica descrevo: quatro planos em relação e duas ausências em mimese. Faltam as árvores, sempre faltam as árvores. Espaço baldo por ocupar. Talvez por ocupar. Logo, pernas de madeira erigidas do chão ao teto. Talvez sejam muitas. Logo, descansos de madeira, adormecimentos horizontais. Talvez camas de repouso. Depois as folhas, a tal madeira fina, suporte das quase infinitas narrativas ahistóricas. Finas vontades em relação, força dada por uma qualquer cola fingida. Como uma representação pictórica descrevo: orfanato de esperanças em desejo de mãos. Mãos, não olhos. Sobre alguns se percebe uma sombra em movimento, reflexo dúbio de um ser que se lhes aproxima. Tento transmitir a extrema excitação destes descrentes abandonados. Já me apaixonei por tantos de vós, eu que nem vos vejo. A cena é animada pelo contraste entre o silêncio contido entre paredes e o ruído disperso pelo exterior infinito, quiçá desconhecido.

20250525

Temos a história de uma paixão entre um Mestre e um Margarita, temos a história de Pôncio Pilatos, temos uma equipa – conselheiro, professor, diabo? (Voland), um gato negro de tamanho descomunal (Begemot), um charlatão (Koróviev ou Fagot), um ruívo (Asaselo), uma donzela sem vergonha (Guela), mas temos, sobretudo, os espaços de Moscovo que Bulgakov escolheu e a sua relação com as ações da sociedade, como um coletivo que age em bloco, e das figuras de caos, como vultos do poder. Uma lembrança: embora Bulgakov tenha sido perseguido e censurado, a sua obra não foi destruída, e ele provou, talvez indiretamente, que a literatura pode sobreviver às forças que tentam silenciá-las, como ele nos disse, o papel escrito recusa-se a arder. Antes de entrar no Moscovo de Bulgakov é oportuno medir a distância entre umas das possíveis definições dos conceitos de espaço e de lugar. O primeiro tem uma condição ideal, teórica, genérica e indefinida; o segundo possui um caráter concreto, empírico, existencial, articulado, definido até aos detalhes. (Montaner in Modernidade Superada) O espaço, como algo ilimitado e abstrato, onde fenómenos e corpos se distribuem de forma geral e impessoal, sem uma conexão direta com a experiência subjetiva ou existencial dos seres humanos, talvez idílico. Em contraste, o lugar é algo muito mais tangível, marcado pela presença de elementos específicos com qualidades materiais e simbólicas, e que se define pela relação com o corpo humano e suas vivências, e vice-versa. O lugar não é apenas uma abstração, mas um ambiente concreto, onde as coisas, os indivíduos e os acontecimentos têm significados próprios. Ao dizer que o lugar está carregado de valores simbólicos, penso tanto no seu caráter histórico, como também na sua articulação ao contexto que se insere, isto é, lugar como algo vivido, experienciado e interpretado por aqueles que o habitam ou se relacionam com ele. Porque é que isto interessa? A aproximação que faço a Moscovo de Bulgakov é sobre esta noção de lugar e a ideia que existe uma metamorfose dupla e contínua como reação a duas forças em interseção, o lugar transforma-nos, enquanto indivíduos e sociedade, e nós transformamos o espaço, carregando-o de traços humanos, rua triste, físicos e psicológicos. Bulgakov comprova esta relação de forças, Ao longe, viu-se uma nuvem horrível com contornos de fumo que se aproximava até cobrir a floresta, e o vento começou a soprar. Ivan sentiu-se sem forças, incapaz de fazer a denúncia, e chorou amargamente. (…) Em breve, a floresta do outro lado do rio recuperou o seu aspecto habitual, e no céu, que voltou a ser de um azul límpido, todas as árvores eram visíveis. O rio acalmou-se. E muito rapidamente, depois da injeção, também Ivan ficou livre da sua angústia. (O Mestre e Margarita) Entende-se o impacto que estes lugares têm para a definição do caráter dos personagens, e o vice versa, reforço, ainda com as palavras de Montaner, que lugar está relacionado com o processo fenomenológico da percepção e da experiência do mundo por parte do corpo humano. Podia seguir o tema da transformação psicológica que os espaço praticam nos utilizadores pelas ideias de Ponty, pela performance de Beuys, ou pelo recorte de Lourdes Castro, entre tantos outros. Mas concentro-me em O mestre e Margarita, e nele entendo que esse lugar, possivelmente moldado pela vontade humana, pode resultar de uma ação de um outro. Isso torna-se interessante se pensarmos em personagens que vivem imersos num lugar ideológico, ainda que nem todos o entendam. A consciência que eles têm de si mesmos e do seu entorno é, de certa forma, moldada por esse contexto, político, social e cultural. Vejamos o caso de Rimski, após os acontecimentos no Teatro de Variétés, em que era altura de agir, tinha de beber o amargo comprimido da responsabilidade, para entender que as personagens não vivem pelo que pensam, mas sim pelas suas experiências no palco, o que sobra não são as suas vontades, mas sim a dimensão vivente dos seus atos, em que o conhecimento é vivido e integrado, não apenas pensado de forma abstrata. Então os personagens vivem de ações miméticas às vontades de uma ideologia, e nós leitores? A partir do conceito de mimese, podemos pensar no palco como uma reprodução, seja de um espaço físico, de uma ideologia ou de uma imagem (como no caso de alguns cenários presentes na obra de Bulgakov, que podem ser lidos como uma reprodução do poder). No livro, encontramos, portanto, uma representação de uma representação: Bulgakov cria lugares com base nas suas intenções, mas esses lugares, por sua vez, já são representações de valores ideológicos que, em algum momento, podem remeter a uma possível origem. Nesse contexto, atrevo-me a sugerir que, em certos momentos, a obra nos apresenta uma cadeia de representações, levando-nos a um ponto em que ficamos imersos em múltiplas camadas de significados. No entanto, não seria essa justamente a crítica que emerge da própria narrativa de Bulgakov? Ao nos envolver em representações de representações, o autor parece convidar-nos a refletir sobre o poder das ideologias e suas manifestações, desconstruindo a realidade por meio da sobreposição dessas camadas. Temos de ser cientes, ou não, de que, como a luz do quarto, que já era fraca, tornou-se ainda mais fraca aos olhos de Stiopa, a vivência que nos é mostrada tem derivações pessoais, neste caso autorais.

20250518

O gesto simbólico de cortar uma página de um corpo maior, contorná-la e olhar para o que resta, não é mais do que uma tentativa de mostrar a abertura da escrita, ou melhor, da sua leitura. Sugere-se a imersão nesse fragmento, tudo se desdobra exponencialmente, qualquer percepção de indícios ocultos, invisíveis, transforma-se em múltiplos desvios para novos lugares, por vezes tão distantes dessa pequena parte – origem. Refiro-me à origem pela necessidade de marcar um início, que é também simbólico, porque todo o centro está em constante fuga, mas a imaginação e a criatividade não têm a capacidade de inventar algo que não existe, não partem do vazio, mas transformam a matéria que alberga o pensamento. Penso então, que essa origem, sem centro significativo, simbólico, não é mais do que o primeiro toque da caneta no papel, o início da escrita. Uma palavra que provoca uma nova palavra. A escrita é assim algo que fica, recortado de uma unidade original, um resto que iluminará os futuros leitores, os futuros seres escreventes. 

20250511

Escrevo em bruto sobre a fraca matéria. As palavras prendem-me. São tão poucas. Mão ignorante. Agarrada às ninharias que lhe oferecem na rua. Pobre e carente. Não de atenção, mas de letras ordenadas que possam ser uma forma de diálogo contigo. Comigo. Arrasto-me. Sem força para levantar o pé do chão. Falência visível. Vês-me a ceder? As letras perdem o lugar. Soltas. Fogem-me. Fogem. Voltem! Não voltam? Vão-se-me. Vou-se-me.

20250504

Cantava o assobio da aflição. Desde cedo que o humano pássaro se fazia ouvir nas ruas por construir da cidade fantasma. O primeiro raio evoca o primeiro movimento da batuta do maestro que indica ao instrumento de carne que está iniciado o musical da construção deste mundo porvir. Pequeno construtor e assobio unem-se na emocionante dança de tornar a matéria dispersa em ordem, que é lar e calor. Assobia o jovem artista. Sopra o som entre pedra e água, toca com os dedos na essência da sobrevivência. És o deus do abrigo, esquecido na terra pelos teus pares do Olimpo. És o som que sonha entrar na janela deste quarto sem porta, esculpido pela mão do medo que me impede de ver a luz. Nem porta, nem janela tenho neste escuro espaço, só compreendo fracos traços da forma disforme que recebe este doente corpo. Que o assobio cresça aqui, preciso do eco para desenhar dentro de mim a abstração de limites que não são linhas nem manchas, mas sim sons dos deuses que descansam . Aquele som de quem se apercebe que se esqueceu de algo. O som das asas que batem em direção à terra em busca desse construtor que é assobio, deste medo que sou eu, guardado neste quarto escuro que não é casa, nem chegada. Vem Prometeu, salta daí e acende este coto de cera que seguro nas minhas tilintantes mãos e ilumina-me a porta e janela para fugir a este mundo.

VOL. I

20250427

Começo com duas vozes. Llansol: Agora o sol, o solo, a solo, encadeiam-me nas palavras. Esta madrugada aproximei-me da certeza de que o texto era um ser.(FP) Foucault: Na escrita, não se trata de manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito de escrita está sempre a desaparecer.(Q?) O diário um falcão no punho, talvez não seja nem uma autobiografia de Llansol, nem uma autobiografia da sua escrita, como cheguei a pensar, ou então o inverso disso, o diário um falcão no punho, talvez seja uma autobiografia de Llansol, e também uma autobiografia da sua escrita. Que se poderia retirar de uma tomada de posição em relação às hipóteses que acabei de anunciar? Pouco, talvez nada. No entanto, atrevo-me a dizer que esse diário é um diário de começos, feitos e por fazer. A sua escrita fulgariza-nos, a partir de uma vontade de  fazer desaparecer a lembrança de si próprio, desligar-se da vida que possuo,(FP) aparece simplesmente para uma nova forma de ver, ler e escrever. Numa escrita só sua encontramos um distanciamento à escrita diarística comumente reconhecida, que resulta num texto distribuidor de começos. Provoca a leitura, procura um novo olhar sobre, apela ao uso da escrita, mostrar-nos que o texto é mais curta distância entre dois pontos em que nos dois extremos está o mesmo sujeito. Pode-se pensar que esta obra de Llansol segue a corrente das confissões de Santo Agostinho, ou da autobiografia sem nexo, que é o livro do desassossego de Pessoa, nas palavras do mesmo, impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho de dizer. Lembre-se, caro leitor, que esta ideia não carrega ausências de significados ou de ser, pelo contrário, revela antes que esse ser escrevente não é mais que estes textos que resistem ao tempo, que superam a dimensão carnal do corpo que os criou. Que se quer com tudo isto? Respondo como Santo Agostinho responde à pergunta Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei. Porquê um fragmento sobre o diário de Llansol? Dedicatória? Dedico-te? Finjo? Finjo-me? Talvez isto não seja mais que uma tentativa de autobiografia das minhas leituras, da minha paixão pelo disperso, um registo-fragmento deste estado de enamoramento entre mim e a literatura (ler, escrever), essa arte casada com o pensamento, e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse verdadeiramente humano, e não uma superficialidade do animal.(SL) Cada vez que me contradigo, cada vez que me engano, sorrio, eu que sou o contrabandista das ideias dos outros. Alguma nova irá surgir a seguir, já a escuto, caminha pelo corredor, e a campainha parece tocar com a porta já aberta.(FP) 
* FP – Um falcão no Punho de Maria Gabriela Llansol; Q? – O que é um autor? – Michel Foucault; SL – Sobre a leitura de Marcel Proust

20250413

Algures num edifício que parece shopping, alguém vai para o novo emprego, eu acompanho-o. Entramos num estranho escritório, sem contrastes, sem formas geométricas. O Salário é elevado, mas não consigo evitar uma certa apreensão. Oiço do seu pensamento. Finjo acalmá-lo com o meu olhar. No elevador, entra uma pessoa que também obteve uma vaga, mas o brilho nos seus olhos é diferente, mais intenso. Assustou-se. Penso. O que será que ele sabe que eu ainda não sei? Devolves-me. Surge uma terceira pessoa. A sua presença arrepia-me. Lembro-me de a ter visto, talvez no dia anterior, a entrar nos bombeiros para fazer aquelas análises obrigatórias ao sangue de que pretende viajar. Estaria a fugir de algo? Ou à procura de algo mais?

20250330

Buenas tardes! He tenido un deseo que se ha apoderado tanto de mí que tengo que compartirlo con vosotros. He pensado que sería una buena idea crear este foro para dejar sugerencias de películas. Espero que no parezca muy atrevido por mi parte hacerlo en esta plataforma, pero quizá sea el mejor lugar para esta posible charla. Ya que estoy en este tono impositivo, también me gustaría sugerir (como quien obliga) la creación de una regla, o ley, para quien quiera perdonarme este fallo antidemocrático. Esta charla se limitará a las películas dirigidas, escritas o pensadas (escojan la acción que mejor les satisfaga) por mujeres. Les dejo, fingiendo que todos estamos de acuerdo, con mis primeras recomendaciones: La metamorfosis de los pájaros, de Catarina Vasconcelos; Ama-San, de Cláudia Varejão; Baan, de Leonor Teles. Para los que puedan estar interesados, me gustaría mencionar también el libro de Mariana Liz y Hilary Owen titulado Cineastas portuguesas: el cine de mujeres en la era contemporánea. Todavía queda mucho por descubrir de este Portugal que pasa desapercibido para muchos. Hasta luego, este que no siempre prefiere el silencio.

20250316

Mais uma vez, erradamente, tento o espanhol. Intento empezar. Una idea que puede crecer o incluso decrecer. Todavía no lo sé, y quizá nunca llegue a saber dónde está _______: ¿en el todo, en la parte, en la grandeza, en la pequeñez? Intento concentrarme. Me fijo en una preocupación. Lo que me preocupa es la distancia que existe entre una percepción (o experiencia) concreta y la representación que se puede hacer de ella, sea a través de una historia contada, un texto escrito, una pintura sobre una tela o unas manos sobre una piedra. Para simular inícios que não tentam mais que ocupar os espaços brancos desta folha.

20250302

El poder, que define las prácticas del espacio, propaga constantemente su firmeza, invadiendo los espacios privados y públicos, en un intento constante de oscurecer significados corrosivos para el individuo y el colectivo, creando significados con apariencia distorsionada para que, en las sombras, se oculte otra ciudad, llamémosla transparente, donde las fuerzas hegemónicas y disciplinarias actúan contra los focos de resistencia. La veo en las sombras de este Madrid que me acoge, en los rincones de mi casa, en las sombras de mis sueños.

20250216

Há que definir um lugar, o espaço onde tudo acontece. A casa. Um lugar de residência, de estabilidade (ou instabilidade?) em devir, uma relação contínua entre realidade e sonho, entre interior e exterior, entre o que é fixo (há algo fixo?) e o que está em movimento. Podemos ver a casa como um lugar de refúgio e de poder, porque, como nos diz Bachelard, a nossa casa é o nosso canto do mundo. Como já foi dito várias vezes, é o nosso primeiro universo, um verdadeiro cosmos em todos os sentidos da palavra (PS). A casa como lugar fundamental, de pensamento e ação, movimentos em relação, nunca separados, talvez aprendidos com Pessoa, não escolho nenhum; mas, como hei de, em certa ocasião, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra (LD). A casa abriga o sonhador, a casa protege o sonhador, a casa permite-lhe sonhar em paz, (PS) a casa permite-nos tocar o infinito, repousar nas memórias, entre pretérito e porvir, ou como nos diz Llansol, é nesta casa que procuro perceber os meus sentimentos e ideias, determinar o seu lugar escondido na invocação do labirinto. (FP) Em passos, neste labirinto, convergem pensamentos, memórias e sonhos, a casa transcende as restrições, oferece um lugar para o imprevisto, para a contemplação, para as vozes, para os acontecimentos. Poderemos falar, então, em dois tipos de acontecimentos: acontecimentos no mundo  (exteriores visíveis) e acontecimentos no interior do corpo (ACI), as duas faces que compõem o ser. É na dança contínua neste cenário, entre o físico e o mental, que podemos almejar habitar a existência.
* PS – The Poetics of Space de Gaston Bachelard; LD – Livro do Desassossego de Fernando Pessoa; FP – Um falcão no Punho de Maria Gabriela Llansol; ACI – Atlas do Corpo e da Imaginação – teoria, fragmento e imagens de Gonçalo M. Tavares

20250202

Em pequeno, mais pequeno, sonhei passar por um buraco minúsculo para chegar a algum lugar. Um pouco maior, ainda mais pequeno, quis chegar à fome extrema para desconhecer os meus limites. Ergui-me ao fingir profundidade, pelo menos motivo. Brinquei com o vazio ao espreitar pela opacidade do buraco. Esqueci-me das mãos. Segurei-me no óleo de eucalipto que, ainda hoje, teima em sair das folhas. Hoje, sento-me e vejo o Charlie Brown. Lá vai ela, a cabeça redonda, sempre tão pequena.

20250126

Vagabundo de ideias do outro, reinvento conto, repenso couto. Sentou-se só sendo / sentou-se para melhor chorar / transparente descendência. Estou-te a explicar-me / ensinar os infinitos modos do sossego / pequeno, alheio ao tempo / confessar dentro da própria voz / hoje é hoje. Caminhava embrulhado no rosto / subir / onde os homens não escrevem pegadas / soprei a vela / convidando o escuro / hoje escrevo sobre um ontem. Mia (pelo que me tens sido) ensinou-me que cada homem é uma raça, finjo a minha, finjo a sua. As palavras são tão suas que chegam a parecer minhas.

20250112

O fragmento é um movimento que produz novidade. A sua utilização impõe uma velocidade e uma geografia própria que se entendem com a associação do substantivo fragmento ao verbo iniciar e ao adjetivo urgente. Na associação com a ação que inicia algo encontra-se o local do nascimento da novidade, o momento de maior intensidade da ideia, a vontade que provoca e acompanha esse movimento. A força que produz começos tem tendência a desvanecer nos diálogos com o real, o que aproxima este movimento produzido, no campo da imaginação da ideia, de um pensamento urgente. O adjetivo escolhido para acompanhar o substantivo fragmento demonstra duas caraterísticas do mesmo, por um lado, a sua capacidade para acelerar o pensamento e a sua representação (linguagem) e, por outro lado, a sua imprudência ao nascer de uma decisão rápida. Duas caraterísticas que o capacitam de poder ser um movimento que cria novidade, um movimento que provoca o experimento, o erro. A criação necessita de uma ração diária de erro, que tanto elimina o que não faz avançar, como provoca nascimentos, e que Gonçalo M. Tavares considera como a ração de erro positiva, de um erro inventor.

O fragmento é uma parte quebrada de uma unidade. Carateriza-se pela sua dimensão e pela sua localização, que se podem entender com a associação do substantivo fragmento ao verbo quebrar e ao adjetivo biográfico. Nasce da separação, abandona o objeto total e passa a ser uma parte de um todo, o que revela a sua dimensão de um destroço do tempo, um símbolo apropriado pela realidade que o circunda que abandona a sua origem, mas que carrega consigo as memórias e caraterísticas desse primeiro momento. O fragmento torna-se biográfico por revelar confidências do total a que pertencia e que ainda o carateriza. Um pedaço quebrado que exprime por completo o facto que o originou, uma separação que permite o reencontro constante com o seu passado. Esta relação entre fragmento e a totalidade, a que pertencia, capacita a parte de caraterísticas do total, o que a reveste de simbologias maiores que a sua própria dimensão. O fragmento é uma quebra biográfica capaz de carregar consigo um mundo subjetivo maior que a sua origem por provocar agitações nostálgicas de sentimentos perdidos.

Ao unir estes dois entendimentos de fragmento encontra-se uma associação analógica com a célula. Se o olhar for sobre o ser humano compreende-se, na reprodução das células, um quebrar da unidade que cria uma nova vida, uma simples divisão que não termina, mas inicia. Uma parte de um objeto que se torna um novo objeto. Uma parte de uma unidade que se transforma numa nova unidade. Um movimento que provoca um novo movimento.

(fragmento in biografia de um fragmento ou fragmento de uma biografia)

20241229

No estendal estão quatro peças de roupa a secar. Nenhuma é minha. Vou roubar uma. Agora uma das peças é minha. Mas reparo, espantado, que no estendal continua a não existir nenhuma peça minha. Fraco ladrão que rouba o outro e nem consegue o prazer da ostentação do novo objeto. Roubamos para mostrar o que tendemos a esconder, da mesma forma que os desejos dos outros perfuram a nossa rotina. Chegamos até a esquecer o que desejamos, até voltar ao estendal vizinho e roubar as cuecas que não me servem, mas que pertencerão à memória do meu filho como um objeto ligado à sombra da paternidade.

20241215

Conto-te a história da feliz estátua que encontrei um dia no jardim dos meus pensamentos. Imagine-se uma estátua que planta todo o jardim: o seu gesto agradece à natureza o esforço dispensado. Por isso sorri, feliz com a obra não sua que lhe pertence mais do que a alma que a inquieta. O sorriso da estátua desenha-se como um rascunho, a mão que o moldou tinha medos e desejos que não lhe pertenciam. Feliz a estátua tão só e tão sua, sem ti, melancólica partilha.

20241201

Hoje só saí de casa 20 minutos, culpem o sedentário, mas foi o suficiente para ver um grupo de pessoas a fazer uma corrida pelos passeios madrilenos, culpem os bêbados. Hoje não sou eu. Apercebi-me, numa daquelas alusões a uma qualquer verdade pura que mais cedo ou mais tarde será a sua antítese, que tenho dias em que passo quase infinitos minutos fora de casa e não vejo ninguém a correr, relembro o lugar de brincadeira que tem a ação de correr, não aquele compromisso ideológico que a contemporaneidade insiste em mitigar entre os seus sujeitos, mas vejo muitas pessoas sentadas, culpem os estagnados. Não digo que a brincadeira esteja fora desses dias, digo que talvez, oh talvez, minha bela certeza, eu esteja desatento, que a forte exposição exterior entorpece a minha visão e acabo com uma nuvem redutora a representar esses longos minutos fora de casa. Encontrei então, nesses 20 minutos fora de casa, uma ideia: a redução do contacto com o que nos é externo aumenta a nossa atenção sobre o mesmo e, obviamente, o vice-versa. Os meus passos seguiam o ritmo da relação desse binómio, enquanto um desce o outro sobre, ou como antes disse, enquanto um se reduz, o outro aumenta-se. Parece-me oportuno dar-vos mais informações sobre esta heróica aventura de 20 minutos. Final de tarde de sábado madrileno com o meu termómetro imaginário a marcar os 8ºC, para alguns considerado um dia frio, caminhei de chinelos, porque tinha acabado de escrever uma cantiga que terminava com a palavra frescura. Então, não vi só pessoas a correr, a visão, esse sentido que insiste em se sobrepor a todos os outros, como também senti frescura, qual sentido se sobrepôs então? Não sei, talvez uma emoção, talvez um sorriso na cara que se tinha desenhado nestas inconsequentes desatenções. Escrevo sentado neste quente de casa, enquanto sinto o que me sobra desta memória ainda tão fresca.

20241117

Exercício: aquecer-se numa fogueira. Arranjar lugar seguro, talvez longe de casa. Levar consigo destroços de lenha, talvez apanhe alguns pelo caminho. Juntar tudo num molhe e acender, talvez Prometeu dê uma ajuda. Esperar, talvez esperar. Dançar, talvez a quietude impeça o aquecimento de todo o corpo. Ou esperar, talvez esperar. Ou dançar, talvez dançar. Aquecer-se numa fogueira, talvez dançar.

20241103

Trazia na mão esquerda um punhado de areia. Dizia ser o seu relógio. O tempo embrulho-se-te-me. O tremer das mãos soltava paulatinamente a areia sem que o homem prestasse atenção. Uma breve distração permitiu a queda de grande parte dos grãos que lhe restavam, atónito encontrou uma cascata sólida que peneirava entre a mole rocha que era a sua mão. Percebeu que nem força, nem sabedoria são capazes de agarrar o último grão. Por fim o fleumático sorriso para a lânguida mão, a trágica comédia em que o ser humano tenta segurar a natureza.

20241020

Uma qualquer biografia: Artista de circo era conhecido pelo seu equilíbrio sobre um fino cabelo. Em cada espetáculo arrancava um cabelo da maior atenção daquele grupo, conhecida por todos os visitantes como a aberração sem corpo, frágil ruína que vivia escondida debaixo dos quase infinitos cabelos. Dizia-se que o artista era o único que conhecia o seu rosto. Mas não estamos aqui para divagações, sou o anunciante de factos verídicos. Voltemos ao artista. Sobre o fio de cabelo bailava o já velho moço, enquanto com as suas mãos fazia o ancestral truque de esconder atrás da orelha as moedas ofertadas pelo público. Tantos corriam ao seu espectáculo recheados com as moedas mais pobres, preparados para implicar uma força de poder sobre aquele “artista do absurdo”. Qualquer mendigo conseguia com a mais simples simulação de prata ser o “impositor” de um gesto. Assim oferecia-se aquele nómada às vontades dos outros, as suas mãos não eram mais que instrumento coletivo. Feliz tristeza regulava o seu ânimo, aquela cedência escondia uma vontade maior, a de percorrer o mundo. A oferta das mãos permitia-lhe a liberdade dos pés, cada prata que mais parecia bronze servia para pagar as longas viagens que fazia pelo incógnito mundo. No registo do seu diário encontram-se endereços que remetem aos mais recônditos territórios, ali conta que já visitou os quinze continentes e atravessou as centenas de mares que rasgam a terra. E assim continua a viagem deste aventureiro nómada que sem saber vive há anos a percorrer os cantos de uma pequena ilha.

20241006

Na porta da igreja ninguém aparece. Metáfora do estado da religião nesta praça que tende a ser amostra do global. Daqui ouço o suspiro solitário do padre, compassado com o estalar de dedos que denuncia o treino ao órgão. Acerto a audição, mas não descubro nenhuma nota. Exercício silenciosos, este desejo de se ser ouvido. Desatento encontro a fachada suja do vazio santuário. Duas colunas do passado suportam o triângulo que deseja a ascensão. Metáfora ignorada pelos transeuntes que pintam esta minha ___ praça de ruídos mundanos e silêncios corriqueiros. Penso acender um cigarro. Nova desatenção, agora do outro lado da praça: (Aparece à varanda. Carne suspensa em pedra. Pedra de um século em pretérito, agarrada a uma ideia de todo em desintegração. Uma casa como qualquer outra na quase infinita repetição da cidade. Reboco como papel rasgado, a possível força do tempo ou a dissimulada decepção de quem ali passou. Apontamentos de tinta perdidos como subtrações de ventos que venceram pela persistência a vontade humana.) Repito: Aparece à varanda. Mãos sobre o metal que previne uma simulada queda sobre a rua que corre debaixo daquele olhar. O sono vem nas roupas, no olhar. Neblina de quem procura algo de concreto para o abandono do sono. Da rua surge o primeiro aceno. Ajeita-se, anima-se. Perde-o, era afinal o doce cumprimento do meio dia para a sua vizinha. Cai em si, jamais a igreja tocará para si. Só, talvez, na morte, se esse impertinente infinito aparecer a si, pequeno abandono, na praça que agora enfrenta. Pequeno como todos os outros que navegam na velocidade do passeio. Não seremos todos pequenos? As estes sorri com a disfarçada tristeza. Pensa regressar para dentro, cumprida a encenação social. A hesitação. Talvez seja o medo do sonho. O pijama irrompe pela casa ainda as mãos estão sobre a grade da varanda. Como um duro suicidio diz adeus à rua e mergulha no escuro do seu íntimo. Tenta não chorar, enquanto a gota marca o chão da varanda com o retrato daquela despedida. Eu sigo aqui sentado, numa varanda do outro lado da praça. Talvez pense sorrir com a desgraça do outro enquanto limpo a água que é pétala do meu rosto imberbe, símbolo da mocidade de quem ainda não enfrenta as suas sombras.

20240922

Ser aqui. Completa cedência do corpo ao espaço. Mergulho no desconhecido, impossível desconhecido. Tento aceitar as perturbações que o espaço que me recebe tem sobre mim. Modela-me o corpo? Terá o espaço capacidade para moldar a matéria? Vou para o meio da sala sem sair do lugar. Alteração perceptiva dos limites em que encerro o meu corpo. Trabalho da mente sobre a matéria da terra. Poderá a fixação dessa matéria mexer com a forma da minha carne? Perguntas como substituição da não vontade de responder. Quiçá, medo ou dúvida. Olho à minha volta, tento ver-me. Só a sombra que se esbate em mim contra o chão e as paredes. Eu sigo sentado com a impertinente noção de mim mesmo. Seis janelas desmaterializam os limites deste espaço. Talvez a sua luz me chegue. Penso largar o papel e a caneta para saborear cada uma das partes desta complexa ausência. Também, por vezes, sou ausência em mim mesmo, indivíduo ou coletivo. Chego a ser desintegração pela luz. Deformação consciente. Chego a ser uma janela de mim mesmo. Resultado de uma qualquer subtração. Assim deixo-me ser este espaço. De olhos fechados penso na tinta escura da caneta e desenho com letras a possibilidade de uma teoria sem validade ou pertinência. 

20240908

Perco-me a olhar-te, pareço quem espera uma resposta sem o esforço da mão, penso aumentar-me, por vezes duvido, tanto duvido, sobretudo em mim, hoje, ou pelo menos para já, lamento-me com a melancolia em tinta, desculpe este aborrecimento inoportuno, para mim é momento azarado,tenho caneta, papel e estado de espírito para mergulhar neste vazio, tão cheio, emocional, encontro aqui animo para devaneios que humildemente ambicionam ser um autorretrato que num possível futuro chorarei a ver, ou recordar, ou imaginar, tento, tanto tento, tento tanto, ou tão pouco tampoco chego mexer-me, fujo sentado nesta cadeira, corpo mole sobre a secretária, equilibro-me sobre a caneta, ferramenta severamente livre que traz a mim o mim, falo tão pouco, para fora, aqui só falo de mim, narciso no colo, embalado por um líquido estranho que insiste em persistir nos meus olhos, não sempre, às vezes, quase sempre sobre o nada, ou será sob o nada?, quem se sobrepõe?, eu ou nada?, talvez seja eu esse nada.

20240825

Nada falo, mas tenho falas que me tremem, não pelo peso de as dizer, mas pela oposição das vezes que não as disse, as mãos tremem quando fumo, ainda mais quando trago o nunca dito, não aquelas banalidades quotidianas, mas sim a saliva que tantas vezes chegou até à língua, quase saiu, mas o medo, tinha medo, não do outro, mas da incerteza do valor de tais falas. Nada falo, mas tenho infinitas conversas comigo mesmo, repetidamente dou por mim a personificar dois opostos discursivos, perco-me tanto em mim, depois nada falo, parece que este diálogo, passado na sombra do íntimo, anula pela pertinência a discussão real com o outro, sem ser eu mesmo. Nada falo, mas irei me tornar, hoje, amanhã, talvez ontem, em algum silêncio que tanto diz, que tanto grita, mas para já, nada falo, aqui não há nada de divino, só de terrestre, de animal primitivo escondido na gruta, uma gruta tão imaginada que é capaz das maiores armadilhas contra mim mesmo. Nada falo, mas tanto falo cá dentro, discussões infinitas com próximos, figuras decisórias ou até seres imaginados, sobretudo estes últimos, talvez todos sejam imaginados, quiçá?, aliás todos são imaginados, vã repetição, falo do rosto, dos traços conhecidos ou desconhecidos. Nada falo, mas tantas palavras tenho, não em robusto vocabulário, sou refém da repetição, mas tantas palavras tenho, quase sempre as mesmas, pelo menos assim penso, sento-me sobre este desabafo por acreditar na desvalorização como ferramenta de análise, método precário?, conscientemente precário, mas sigo. Nada falo, mas piso pegadas antigas para que um dia a precariedade se torne noutra coisa qualquer, quiçá?, até em algo bom, ou belo, que belo?

20240811

Comunicado pela aldeia: Hoje as estrelas desistem do céu e mergulham no infinito escuro da noite. Escolhe-se um olhar, como quem privilegia, uma certa arrogância do que se sabe certo no incerto. Concentro-me e espero. Algo foge. Não mais que um breve pensamento. Sentado com as costas no mundo, sonho com algo. O quê? Não sei. Invadido pelas analogias, amigas que não desertam, transformo a espera na verdadeira filosofia. Pequenas luzes num imenso escuro transformam-se numa única e infinita luz que tenta escapar à manta escura, que um qualquer deus decidiu pousar sobre si. Sim, sobre si. Na espera, a luz tem consciência de si. Até eu, chego a ter consciência de mim. Claro que não passa de um rápido esboço desenhado com a mão da desatenção. Tudo isto e um breve segundo. A espera não me atormenta. Mas já atormentou. Digo até, que me acalma. Nenhuma vontade, impulso, quiçá gesto, pode puxar as estrelas até mim. Nem uma. Nem eu. Que sou? Aqui, agora deitado, sou o que espera. Nem simples sorriso responde à pergunta do ser. De deitado a sentado, chego a uma esplanada. De uma voz foge uma ideia. Ser o que atenta na própria atenção. Não me chego a confundir nessa clareza. Não caio em porquês, atento. Tento ver o olhar longe da linguagem que me ofereceram, do berço até hoje. Hoje, aqui sozinho. Jamais sozinho. De barriga para a lua, como quem se alimenta do sonho, estamos lado a lado. De mão dada pisamos uma ideia de futuro. Apesar da corrupção da envolvente, apesar de me saber até contradizente, hoje acredito, humilde ou fraco crente, na possibilidade de desenhar um por vir. Sei que este nos fugirá como a areia da mão. Talvez não saiba, talvez nada saiba. Mas hoje, neste pavimento quente, descanso as costas e imagino uma chuva de estrelas. Imagino-me a sair de mim e a largar esta pesada caneta.

20240728

Oportuna-se uma apresentação. Ou finge-se que sim. Nasci por minha vontade. Ou finge-se que sim. Depois de longos estudos e discussões decidi o meu tempo e o meu espaço. Ou finge-se que sim. Já se entendeu o propósito destas letras serem uma conspiração ao meu pretérito originário. Avancemos. Muito debati comigo, num impossível acordo entre interno e externo, se preferia crescer junto ao mar ou junto ao rio. Por outras palavras, praia ou campo. O tempo mostra-nos os enganos, então, entre cheiro de pinheiros e eucaliptos, cresci com duas deficiências. Chamo-lhes deficiências por ausências. Imaginemos a primeira, psicológica. Passei de vontade a corpo junto a um rio raso, torna-se óbvio que o nadar se tornou uma hipótese árdua e, quiçá, assustadora. Luto, como quem não luta, por conquistar essa capacidade de tornar o meu corpo pena sobre água, uma pena metafórica capaz de aguentar a violência da água. Imaginemos a segunda, física. De batas brancas com pernas, ou pelo menos pés, descobri que tenho um desacerto na respiração. Avisam-me que a melhor solução é o caminhar junto ao mar, que o rebelde sal é essencial ao meu alimento gasoso. Ironia? Finjo que sim.

20240714

Finjo que olho para trás. Desenha-se um fim. Ao longo de seis meses afastei-me desta possibilidade, mas hoje torna-se obrigatório, pelo menos inevitável. Não penso na velocidade do que passou, penso no entanto, na velocidade do que se teria passado se não tivesse ido. Tento medir a impossível hipótese. Onde estaria? Como estaria? Perguntas demasiadamente grandes, ou vagas, para não amedrontar a possibilidade. De certo não ficaria onde estava, o desconcerto entre mim e as minhas atividades quotidianas aproximavam-me de um qualquer precipício. Não que caminhasse perto de um abismo de medos e sustos, mas sim lado a lado com uma vontade de abandono espontânea, talvez sem rumo, motivo ou ordem. Talvez uma qualquer fuga. Teria por certo a consciência que o por vir seria melhor que o ficar. A imobilidade magoava-me, afastava-me até de uma qualquer vontade social, ou quiçá, íntima. Perdi-me. Sem grande motivo perdi-me num raciocino que não chegou a sair do sítio. Fica assim este texto como analogia a esse eu pretérito. Também eu pensava, até sonhava, com futuros destinos, mas não saí de onde estava, também este texto ambicionou linhas profundas e perdeu-se numa fácil superficialidade. Perdi-me, aqui. Volto ao aqui, se é que alguma vez aqui estive. Penso nos lugares que piso com uma narrativa de presente. A escrita torna-se-me lenta. Talvez não saiba para onde ir. A resposta estaria num lugar íntimo, demasiadamente dentro para conseguir descrever. Talvez precise de tempo. Talvez não sejam estas letras mais que um frágil exercício, ou um corajoso apelo, de esticar a chegada de uma qualquer resposta. 

20240630

Quando penso na matemática da música, chamemos-lhe ciência poética, sento-me em mim, aprecio-te-me: Lento suícidio em compassos quaternários. Deito-me sobre as primeiras teclas, repouso do consciente, atrevimento de sonhar a preto e branco. Mãos de ilusionista sobre papel. Esqueço a vigia. Não sei onde me levo. Quietude em sombra, iluminada pela lua – pedra antiquíssima. Beijo temperado com sangue de lágrima. Ouve-se a sinfonia da culpa. Desconheço-me. Não só aqui. Perco-me em todos os sons, de mim. Componho a melodia do que penso, ou não penso. Tento-me. Serei o ingénuo – pergunto-me sem interrogação – afirmo-me com a inexistente proclamação. Rosto em fingimento. Tento sossegar-me no sonho. Encontro entre pretérito e por vir: mão que toca no pé, silêncio que grita. Penso-me. Serei adjetivo nostálgico? Fico em palavras, contorno em trinta e sete linhas. Sei que, tudo tende para o esquecimento.

20240616

Despertava cedo, o plano delineado com R era sermos os primeiros a começar. Tinha ao meu lado o profissionalismo metódico recebido dos irmãos mais velhos. O ponto de encontro estava estrategicamente posicionado, se em planta desenhássemos um “8” ele estava representado pelo cruzamento da linha. A atividade consistia, resumidamente, em percorrer um determinado percurso e ao longo do mesmo recolher o máximo de doces e chocolates. Falo do Dia do Bolinho, ou, para minha grande tristeza, o oficialmente reconhecido, Dia de todos os Santos. O regresso a esta memória pode ser uma vã tentativa de sobrepor a infância à religião. Enérgicos seguíamos a rota anteriormente desenhada. No início éramos interrompidos pelo medo, a metamorfose da vergonha em inação. Entre nós fazíamos “pedra, papel ou tesoura” para encontrar o derrotado que teria de disfarçar o medo e gritar à porta da próxima casa – “oh ti-tia dá bolinho!”. Os primeiros doces iam caindo no saco da mão direita e a coragem ia ganhando força. O fruto do enfrentar é demasiado delicioso para cair na estagnação. Ainda temos muitas casas a visitar – lembrava R. O encontro com outras crianças relembrava-nos do caráter competitivo do jogo que decidimos entrar para ganhar. Ao longo dos passos íamos reactivando os truques que escondíamos debaixo da manga como vantagens para a conquista. Dois exemplos. Se a casa já tiver adversários seguimos para logo regressar, o aglomerado de crianças traz do adulto a tendência para a redução do prémio de cada. Ou então a fuga às casa que sabíamos que só tinham matéria para o saco da mão esquerda, a terrível reserva dos bolos típicos, imagem do mal contra o bem, que eram os doces, os chocolates, os açúcares em várias cores. O dia podia ser bem mais que isto, pois sei que pela tarde os adultos reuniam-se num caminhar entre vinho e sal, mas o que me fica é o desafio e o caráter excecional que pintava aquele dia. Sentia-me um jogador preparado para um jogo feliz que oferece os finitos doces daquela infinita infância. Guardo uma casa. No presente que agora é pretérito revestiu-se de um momento de medo, entrada sinuosa, algum escuro e uma dúvida em cheiros. O prémio era desilusão, nozes, qual pesadelo de criança. Cá fora a casa era acabada com um pintura abatida e triste. Hoje não perco aquelas mãos, tampouco o olhar, o que era sombrio tornou-se luz, o que repelia, agora atrai. Estranho sentimento de um pequeno momento perdido no inteiro daquele dia. Torna-se agora titulo desta simulada unidade. Título: nozes da mão.

20240602

Sobre o dia de ontem. Ela, que se habituara à morte lenta e à reposição de novas vidas, estagnou com aquele desastre. Como uma cidade devastada pela guerra, a morte marcava todo o território, o gado tinha sido consumido pela peste. O inimigo desconhecido daquelas terras tinha dizimado a sua família, a companhia diária. Caiu de joelhos e chorou o lamento, as lágrimas que representavam todas as mortes que enfrentou ao longo da vida. Todas as perdas consumadas em águas temperadas. Não só as daquele dia. Vieram-lhe aos olhos os avós, os pais, a família, o filho. O filho que perdera. O filho que desapareceu no sótão de uma casa sem sótão, o dependente dos males do mundo. Chorou tanto que quase se perdeu. Nesse dia deixou-se dormir na tristeza. Agora vejo-a. Acordada. As suas lágrimas criaram um novo jardim, verde de infância. É nesse jardim que brinco e guardarei até ao último respirar o teu calor de mãe. Hoje, neste celebrado dia da criança, recordo-me de ti. Sei que ainda vives, mas penso nas futuras lágrimas da despedida. Estou longe, mas levo-te no bolso. Nas flores que recebem estas minhas palavras vejo o sorriso e o carinho da infância que me deste. O pequeno feliz que te dava a mão. Tremem-me as mãos pela saudade. Anseio o regresso que se transformará em abraço. Quero mostrar-te que as tuas lágrimas criaram o jardim que foi a parte de trás da minha casa de infância. A ti, avó, digo-te que a morte pode ser superada pela infância. Digo-te, porque tu o sabes, mas podes ter tendência para o esquecimento. Espero que na espuma dos dias sussurrem em ti os nossos momentos pretéritos. Que toda a culpa se vá no abraço do perdão. Estou tão longe que te entendo. Juro que entendo, o que não entendo, mas beijo-te as mãos, porque precisas, isso sei: que precisas. A criança que sou é saudade da criança que me foste.

20240519

O ponto de encontro já estava definido pelo hábito. Faltava decidir a direção da ida. Três hipóteses. Duas comuns e uma terceira que era escolhida normalmente para compensar erros. Vamos descer. A decisão foi tomada então pela menos óbvia. Como uma gota que desce vertiginosamente de uma qualquer nuvem. Deixámos os corpos ir, protegidos pela crença de duas rodas suspensas em meia dúzia de ferros. Apesar de não ser novidade, a descida sempre assustava. De duas ou três curvas aquele deixar ir era tão rápido no tempo do dia e tão longo no espaço do nosso mundo. Assim, regidos pelos métodos relacionais da altura, descemos. Em constante desafio, provocação e até ostentação de uma falsa coragem. Chego à última curva na liderança. Conquisto o direto de comandar o destino da viagem. Visto à distância dos anos percebo essa constante necessidade que tinha de ser o líder. Essa tarde de verão não foi excessão. Após a chegada ao terreno nivelado virei na primeira oportunidade à esquerda. As escolhas têm de ser, aparentemente, afirmativas para desviar qualquer burburinho de dúvida sobre a autoridade. Três crianças seguiam-me, mais distante D, quase a meu lado C e bem encostado a mim B. Seguíamos agora paralelos ao rio, ritmo mais calmo. A descontração da conquista, da plenitude. Até vimos a nossa primeira cascata, não das que agora conheço maiores que prédios, antes um pequeno detalhe da natureza. Simples e envergonhada apresentava-se, naquela época, como um dos maiores feitos deste globo que nos dá casa. As bicicletas seguiam em frente, mas os nossos olhos ficavam presos naquele espectáculo de água em dois estados. A urgência do nada obrigava-nos a seguir em frente com a promessa nunca cumprida de ali regressar – não ao alcatrão que pisávamos, mas à água que desejávamos. Talvez algum medo tenha sido o responsável do retorno anulado. Seguimos numa direção, limitados à esquerda por mato denso e à direita por rasas ervas. Como qualquer fragmento de natureza a unificação do todo desvirtua a representação de todas as excessões implícitas. Algures fomos surpreendidos por uma marcação de caminho à direita. Parámos. Tomar da coragem dos primeiros olhares no possível desconhecido. A terra marcada levou-nos a uma pequena ponte metálica sobre um quase seco rio, talvez riacho. Neste ponto, como narrador desta vã história, poderia derivar por vários dias desse verão. Pisar esta ponte começou a ser hábito. Algures neste contínuo retorno avistámos o pequeno conjunto de pedras que conquistava o rio, talvez riacho. Algures sob o sol escaldante de agosto e sobre a ponte de ferro escrevemos a lenda do navegador que descobriu a ilha num rio sem água. O que é o destino? Era a voz da ponte. Hoje parece-me que não seja mais que um errado sinónimo para a arbitrariedade da vida. Naquele dia era carícia de água sobre a pele.

20240505

A aurora traz consigo a possibilidade, marca a repetição, ou aparente repetição, quando o olhar segue apenas os traços gerais do dia. No que nos parece irrelevante, no que vemos como despojos pode estar guardada a essência da existência. O uso do substantivo essência parece-me ser um exagero supérfluo, mas temos de aceitar as nossas incapacidades e/ou manias. Posto isto, trago ao texto um personagem. Alguém ou algo que pode ser um pouco de nós se acreditarmos na metamorfose que transforma os seus hábitos nos nossos, as suas peculiaridades nas nossas. Em seu redor paira uma ordem, resultado do belo ou ilusionismo, uma espécie de controlo sobre a tão arbitrária existência, uma esquematização metódica dos gestos, deixando os desejos para o mais ínfimo espaço/tempo. Imagine-se então a suspensão desse, aparentemente inviolável, sistema. Imagine-se até um grito no silêncio, símbolo do maior atrevimento, quiçá, verdadeira beleza. Aquando do choque dessa ordem grita no silêncio a verdadeira felicidade, para o maior atrevido: a verdadeira beleza. A alteração da ordem ou a exceção na regra traz a novidade, uma nova forma de ver, um deslocação que pode até valorizar a tão consagrada e resolvida existência. Os corpos hierarquizados tornam-se estáticos e distantes do mundo sensível, a imersão na eterna individualidade. Aqui confundo-me. Serei involuntariamente o que vi? Ontem vi Dias Perfeitos, de Wim Wenders, e perdi-me em retratos, meus ou coletivos, tento aqui encontrar os recortes do que vi. Será o belo um sentimento perdido na espuma dos dias? O tempo como máquina repetitiva, o conformismo de pequenos gestos, o belo nos fragmentos livres. Trouxe isto, talvez mais, nem sei. Deixei na sala belas imagens, senti que estava ao lado da equipa de filmagem na escolha dos planos, das cores e das texturas, acreditei até que aparecia a minha mão sobre a câmara para direcionar o olhar para o meu desejo individual e egoista. Observador, qual Narciso: Caiu em mim um sentimento de pertença. Talvez me encontre no retorno, troquei a cadeira da sala pelo repouso escrito em casa. Sorrio com a beleza da vida, tristemente feliz, amanhã a aurora reaparece e a oportunidade de existir continua. Para já, pouso a caneta enquanto imagino que isto pode ser uma crónica, só não sei se de um filme ou de um olhar pela janela.